quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Partes

Falta-me um bocadinho assim. Só um bocadinho. Falta um bocadinho para que não procure em todas as frases algum sinal que te ligue a mim. Para que não fique num estado vegetativo à espera do vislumbre de um sorriso que nasça sem se fazer anunciar. Falta-me um bocadinho assim para que não morra quando não falas e não morra quando falas. Porque quando não falas aparece uma tempestade que tudo leva e me deixa assim com o mau humor dos trovões que não conseguem sossegar a voz nem parar de mostrar os relâmpagos. Porque quando falas, os ouvidos tapam-se de água embalada e imersa no ondear do teu timbre e tudo o que ouço são suaves cantares de sereias que me levam a um outro porto para onde não comprei bilhete. Falta-me só um bocadinho assim para que os dedos parem a tempo de um descarrilamento que me leva de novo até ti em pequenas frases de circunstância, em risos fáceis e volúveis, em sons articulados como braços mecânicos para que não se perceba que há bolas de gritos que me engasgam a garganta.
Falta-me só um bocadinho assim para que a pele não estremeça em galinha, poro por poro, quando absorve o teu perfume e se vicia nos queixumes atrasados das pegas de pernas e braços em confronto, boca aberta a um sopro de hálito quente com sabor a caudal de rio fresco com limos e peixes de prata.
Falta-me só um bocadinho assim para que te arrume, bem dobrado, na gaveta, com leves sabonetes com fragrâncias e te guarde, porque a temporada já passou e é altura de vestir levezas em padrões cor-de-rosa com passarinhos que cantam de cada vez que me mexo.
Falta-me um bocadinho assim para que o cão de guia me venha buscar e te deixe, a ti cego que nunca me vê, para atravessar a estrada da outra vida que está daquele lado parada no semáforo à espera de um sinal verde. É só um bocadinho assim.

1 comentário:

Anónimo disse...

Também já me faltou mais...