quarta-feira, 23 de abril de 2008
Angola 74
Há livros que tocam..Ontem li um deles. Li "Retornados, Um amor nunca se esquece" do Julio Magalhães e li-o todo ontem à noite. Não que seja uma grande obra literária merecedora de um Nobel, pelo contrário é uma escrita normal, simples, quase a raiar o bilhete que se escreve em casa. A questão não foi a "grandeza" da escrita, foi o tema. A minha irmã também tinha lido o livro numa noite e a minha mãe em dois dias, mas elas têm um fraquinho pelo Júlio homem :)Nasci em Julho de 1974 no dia em que mataram o taxista em Luanda e que deu inicio aos confrontos civis raciais, pautados por emboscadas nos musseques e destruição cega de raiva. Foi das primeiras coisas que ouvi dizer à minha mãe " nasceste com os tiros e por isso és assim, nervosinha." :). Não tenho recordações de Angola, a não ser aquelas que foram construídas pelos (poucos) comentários dos meus pais. Não se falava em casa sobre Angola, acho que doía demais, que se optou por embalar as recordações naquelas grandes malas de latão tão características da época. Restava o frigorifico, que se tinha salvo no meio dos tiros, e que ainda hoje teima em funcionar e nos lembrar da nossa história.Viemos, creio que, em Setembro de 1975, de férias. Depois das filhas devidamente acomodadas na famíla que se apertava para dar espaço aos que vinham (eram 3 os filhos que voltavam à terra), os meus pais voltaram a Luanda. Creio que no fundo, bem no fundo, ainda havia um pouco de esperança que até ao anunciado dia 11 de Novembro as coisas melhorassem. Tantos que, como os meus pais, não acreditavam que era o fim, que Angola tinha sido "entregue" no meio de manobras politicas defendidas por Mário Soares, Agostinho Neto e Álvaro Cunhal. Também defendo que a descolonização tinha de ser feita. Não fazia sentido no panorama internacional e desde 61, com a "entrega" da India o "orgulhosamente sós" já não cabia neste país pequenino, mas a grande questão foi como isso foi feito e como o vazio ficou nos milhões que foram obrigados a voltar a um pais colonizador que não estava pronto para nos receber, porque ele próprio estava em mudança descontrolada. "Retornados" ouvi eu tanta vez...com o passar do tempo a resposta construida pronta na ponta da língua "retornado é quem retorna, eu nasci em Angola e vim para Portugal".Não consigo explicar o que senti ao ler o livro. Saltaram tantas memórias que não posso ter...O cheiro de Luanda e sua baía, a alegre descontracção de um pais que era mais livre e evoluído no pensamento e na forma de se viver que o seu próprio colonizador. A ponte aerea, os milhares à espera no aeroporto, e eu ao colo da minha mae dentro de um avião, a minha irmã ao colo do meu pai que olha lá para fora para o sonho de vida que já não cabe ali. A obrigação de recomeçar no meio do nada, do vazio que fica no depois.Lá em casa, voltou-se a falar de Angola, livremente e com alguma alegria quando a minha irmã voltou a Luanda pela primeira vez. Fiquei a conhecer a Cuca, a marginal, os pires de camarões que se davam nos cafés com a cerveja, como aqui dão tremoços. Tudo o que ontem o livro me fez recordar... o calor, a felicidade, o sonho, o vazio.A primeira vez que aterrou em Luanda, a minha irmã diz que chorou durante 45 minutos sem conseguir explicar porque. Também eu chorei ontem a ler, as memorias que não posso ter. Foi estranho e tão bom. Sou Angola, nas minhas veias corre esse calor (diz a minha mãe).
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