sexta-feira, 23 de abril de 2010

Mentiras

"Você sonha demais, e, à força de querer outras coisas que não há, vai negando as coisas que existem, o que é uma forma de alienação pura e simples. Porque o que havia entre ambos, separando-os, eram as falsas dimensões sonhadas, disse Afonso, e por isso ele proibia-a de sonhar. Mas ela abria um guarda-sol na varanda e sonhava debaixo do guarda-sol, ou abria um guarda-chuva na rua, e sonhava debaixo do guarda-chuva, onde ele não pudesse ver a sua cabeça e os sonhos que corriam dentro dela.
(…)

É que ela esperava que o amor fosse uma ponte para outra coisa, disse Afonso, outra coisa que não existia, não existiria nunca, ela forçava obscuramente um caminho através do amor, através dele, uma saída, uma porta, uma passagem, como se o universo fosse de repente abrir-se, alargar-se em direcções diversas - mas não havia no universo dimensões sonhadas, existia apenas o quotidiano, exacto e transparente.
(…)

mas ela queria a vivência, a qualquer preço, procurava uma visão desmedida das coisas, e por isso sofria, porque toda a consciência era dolorosa. Ir sempre mais além, como um animal caminhando obstinadamente pela areia, um pequeno animal cego avançando, recusando cada ponto de chegada para nunca parar de caminhar, era isso, Lídia, ele sabia, a ansiedade que a levava a recusar a sua vida, a vida possível, na pressa de procurar outra, mais alta mas inexistente, Lídia, ele sabia..."

Teolinda Gersão,in “O Silêncio”

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