quarta-feira, 15 de abril de 2009

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O portão estava fechado. Estranho, pensou ela, o portão nunca está fechado.
Procurou a chave na sua mala, já nem sabia bem onde a tinha posto, mas lá encontrou e abriu o portão.
Encaminhou-se, como sempre, para a pequena casa de serviços, onde guardava os utensílios e que, ao mesmo tempo, servia de seu abrigo. Já há muito tempo que era assim. Tinha-se habituado ao portão aberto, a entrar de rompante, dirigir-se à casa e a tratar do que ia aparecendo para fazer. Regar as flores era o que preferia. Sentia que dava vida.
Assim, um amor murado, sua pertença, onde tinha o poder de fazer viver.
Mas naquela manhã estranhava o portão fechado. Sempre tinha estado aberto. Mesmo depois de ter sido vandalizado o espaço, arrancadas as flores, espezinhado o seu sonho. Sempre o tinha deixado aberto.
Mas não hoje. Estranho.
Começou a rotina, o que sempre fazia, porque não era mulher de se encolher a um canto ou de sair a gritar, fugir, só porque o portão estava diferente do habitual.
Foi buscar o seu avental, preparou a terra, lançou a semente, sachou o que precisava.
De vez em quando, a estranheza do portão estar fechado. Mas porque? Mas porque?
A meio da manhã parou a admirar o melro que constantemente lhe fazia companhia. As penas pretas, pretas, pretas, e o bico amarelo, amarelo, para dar cor à ave, porque senão ela seria um corvo e era logo um pássaro diferente.
Lembrava-se muitas vezes da primeira vez que tinha entrado neste espaço. O portão aberto. E de todas as vezes que se seguiram com o portão aberto. De todas as vezes que o espaço era ela. Tudo combinado na terra. Sempre que ela chegava ao portão aberto, com o portão aberto.
De repente lembrou-se. Ontem no final do dia, quando se preparava para ir embora, os jarros, as meninas dos seus olhos, seus amores-perfeitos, tentavam sair do jardim. Apanhou-os quase à entrada, caule ante caule, sorrateiros, a tentar sair e a deixarem o jardim incapaz de ser assim chamado sem jarros. Teve muito medo. Lembrava-se do leve pânico que sentira só de pensar que podia ficar sem os jarros, que eram o ex-líbris daquele espaço.
Fora ela que fechara o portão. Fora ela que o fizera depois de levar os jarros para o sítio certo, para que a seiva pulsasse outra vez.
Fora ela. Tinha havido uma razão. Mas agora já não havia mais, por isso tirou o avental, pegou na sua mala e guardou as chaves no fundo. O portão ia ficar aberto. Como sempre ficara.

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